Antônio Ferreira da Annunciação

Um pioneiro na música brasileira pode desaparecer sem o devido reconhecimento?

Por Paulo Paiva
O sorridente Annunciação em foto tirada por outro grande artista: Mário Queiroz, em Olivença, 1984.
Um dia desses vi outro pioneiro da música, o baterista Sabará, e comentei – Annunciação tá em Salvador, né? Annunciação já morreu! Ele me respondeu. Fiquei surpreso, já que os amigos me diziam que ele estava no Pelourinho dando aulas de percussão.
Quis confirmar na internet, e nada. Mas haviam pistas de que ele já teria partido, visto que encontrei a super banda baiana “Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz“, que havia composto a música “Anunciação” com a referência: “dedicada ao grande mestre da bateria e percussão Antonio Ferreira da Anunciação, um dos pioneiros no encontro da musica da Bahia com o Jazz”. Nota à parte, o disco foi considerado o melhor do 21 Prêmio da Música Brasileira 2010.
Mas quem foi Annunciação, com dois “n”?
Um mestre da percussão que morou em Ilhéus durante a década de 80, onde se exilou por dificuldades de sobrevivência, depois de uma trajetória da maior importância para a música brasileira. E se não encontramos uma única resenha sobre a grandeza de sua obra, sobrou para mim essa tarefa honrosa.
Um mestre, antes de mais nada, do berimbal, dos caxixis, do bongô. Talento nato, que uma bailarina russa viu tocando uma lata durante sua turnê em Salvador, e carregou o garoto para São Paulo. Lá se tornou músico permanente no Jean Sebastian Bar, onde circulava músicos de uma das melhores safras de artistas, figuras como Sergio Mendes, Airton Moreira, Flora Purin, Nana Vasconcelos e Hermeto Pascoal. * Preciso conferir a informação sobre o nome desse bar, já que não encontrei referências na internet.
Dos bares para fazer música no teatro, estreou em “Arena Conta Zumbi”, peça de Augusto Boal, marco do Teatro de Arena, estrelado por Gianfrancesco Guarnieri, Lima Duarte, Marília Medalha, David José, Anthero de Oliveira, Vanya Sant’Anna e Dina Sfat -Prêmio Atriz Revelação do Governo de São Paulo. Annunciação junto com Nenê eram elenco/personagem tocando ao vivo.
Atuou também em outra peça importantíssima, “Arena Conta Bolivar”, proibida pela censura militar em 1971, também de Augusto Boal, com músicas de Théo de Barros, tendo Lima Duarte, Renato Consorte, Cecília Thumim, Isabel Ribeiro, Zezé Motta, Hélio Ari, Benê Silva e Fernando Peixoto no elenco. Annunciação e Nenê tocavam bateria, ao lado de Théo Barros no violão.
Com os dois clássicos do teatro, Annunciação participou de uma das maiores excursões internacionais do teatro brasileiro. Estreando em São Paulo, e seguindo para temporadas no Rio de Janeiro, as duas as peças-musicais foram apresentadas em Buenos Aires, Montividéu, Cidade do México, Lima e Nova York, essa última, em 18 de agosto de 1969, no Saint Clement’s Theatre. Foram diversas montagens e remontagens dessas peças-musicais durante a ditadura militar, remontagens que acontecem também no teatro contemporâneo.
As grandes participações não pararam aí. Do balé para os bares, dos bares para o teatro e do teatro para o cinema. O inusitado percussionista é colhido por outros gênios de sua época como Glauber Rocha e Hemerto Pascoal. Com Glauber, toca percussão em filmes como “A Idade da Terra” – “The age of the Earth” (veja seu nome nos créditos), e com Hermeto participa de um disco considerado um dos marcos da música brasileira: “A Música Livre de Hermeto Pascoal”.
Gravando com Hermeto, mudou o paradigma da percussão brasileira, e elevou o status do percussionista, solista, em primeiro plano. Tornou-se o primeiro a gravar em oito canais de áudio dedicados exclusivos a percussão. Nesse disco memorável, tocou bateria e percussão nos clássicos “Carinhoso/Pixinguinha-Braguinha” e “Asa Branca/Humberto Teixeira-Luiz Gonzaga “, também fez solos de berimbal (veja seu magnífico solo com canto), e até de bacia (de lavar roupa).
Annunciação adorava contar passagens memoráveis, como a confusão que Hermeto armou nos estúdios da TV Globo, quando insistia em botar os porcos (suínos) no palco – “Tudo veio abaixo e Hermeto gostou do som da escada caindo”, dizia.
O certo é que, ao falar desse percussionista, negro de Salvador, que nasceu e morreu pobre nessa mesma cidade, precisamos lembrar do ele tocava. Era um improvisador de uma percussão discreta e melódica, seguro nos compassos mais tortuosos, fazia jazz brasileiro, baiano, de sotaque universal. Com isso tudo, esse artesão dos sons, encontrou seu espaço, ao menos, nas fichas técnicas dos grandes espetáculos de que participou.
Sua passagem por Ilhéus…
Depois dessa grande fase, Annunciação voltou para Salvador, e já com problemas de saúde foi trazido para Ilhéus por Saul Barbosa, com quem tocou e gravou durante vários anos. Também tocou com todos os outros músicos da época, inclusive no Trio Elétrico dos carnavais de Ilhéus. Num desses, um pedestal da bateria bateu num fio elétrico na altura da Catedral – “Só ouvi o estrondo e me joguei dentro do bumbo”, contava ele às gargalhadas; um incidente que lhe deixara uma marca de queimadura no olho esquerdo.
Por aqui foi mestre de todos nós interessados por música boa. Era homem de sorriso grande, um apaixonado pela linguagem corporal, principalmente das mãos, um contador de sua próprias histórias, sempre recheadas de metáforas sobre a universalidade, o Brasil, a Bahia e sobre os valores da negritude, que, para ele, nada tinha haver com a cor da pele.
Lembro que, no seu quartinho tinha um baú, cheio de bugigangas, papeis às traças, velhas e novas partituras, onde escrevia com a linguagem dos sons; também tinha muitas mensagens espirituais, e, claro, fotos de mulheres nuas. Ele tinha um ciúme doido daquelas coisas estragando com a umidade, e eu sentia que precisava documentar aquilo para a Bahia, mas ele sempre brincava – “deixa minhas coisas, você quer é ficar bilionário depois que eu morrer”.
Esse breve relato clareia um pouco quem foi Antônio Ferreira da Annunciação com dois “n”, como ele sempre frisava; uma correção que nenhuma ficha técnica conseguiu fazer. O fato é, que esse Ann, ou Anunciação, foi um grande artista, e que precisa servir de referência não apenas entre músicos, mas para toda a sociedade.
Graças a Deus, seguindo a internet não encontrei a palavra faleceu ou morreu; melhor assim, meu querido Sabará, pois continuo duvidando da morte, percebendo que os astros continuam a batucar com a benção dos Orixás, fluindo de lá para cá, e de cá para lá, como as ondas do mar…

3 comentários em “Antônio Ferreira da Annunciação”

  1. Sabará é uma dessas peças raras. Tive o prazer de ter tido a possibilidade de conversar com ele mesmo que por um breve mas precioso momento em uma carona dada de ilhéus a itabuna. Coisas da vida. Grande músico.

    Neill Rocha

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