O ministério preparou uma nova norma em que, com base no Código Penal, dispensa médicos de exigirem BO em caso de gravidez por estupro. Na norma anterior, de 1998, na gestão de Fernando Henrique Cardoso, o documento era obrigatório para aborto legal.
O Código Penal inclui o aborto entre os crimes contra a vida e prevê duas exceções –estupro e risco de vida à mulher–, mas não diz que é necessária a apresentação de BO na primeira hipótese.
Baseado nessa interpretação, o governo editou a norma com a orientação ao médico: “Deve-se orientá-la [a mulher grávida após estupro] a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento”.
Pelo atual Código de Ética Médica, no entanto, o profissional da saúde pode alegar objeção de consciência e não realizar a interrupção da gravidez.
O artigo 126 do Código Penal prevê de um a quatro anos de prisão para os condenados por “provocar aborto com o consentimento da gestante”. Mas, no documento, o governo diz que o médico não deve temer conseqüências jurídicas caso, posteriormente, descubra-se que a gravidez não foi resultado de estupro. Cita novamente o Código Penal, artigo 20, inciso 1º, que isenta de pena “quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”.
Segundo Tereza Campos, diretora de Ações Programáticas e Estratégicas do Ministério da Saúde, o governo apenas garante o direito a atenção da saúde, como prevê a Constituição, ao normatizar o atendimento do aborto legal.
“O ministério não está assumindo atribuições do Judiciário ou do Legislativo. A norma garante o atendimento a um processo que é legal pelo Código Penal.”
A exigência de apresentação do BO é uma restrição ao exercício de um direito constitucional, segundo o juiz José Henrique Torres, professor de direito penal da PUC de Campinas. Ele foi um dos especialistas consultados para a elaboração da norma técnica.
“O BO não prova nada, é apenas uma notícia do fato. Não se pode confundir assistência médica com inquérito policial. Ninguém pede para uma pessoa que foi quase assassinada um prova de que sofreu tentativa de homicídio.”
Ele refutou a idéia de que as mulheres irão burlar o sistema para fazer abortos ilegais (sem estupro). “Isto é feito há mais de dez anos, em mais de cem hospitais.”
Torres também aponta como equívoco imaginar que o serviço de aborto legal seria feito com irresponsabilidade. “Ninguém vai dizer: “Foi estuprada? Então deita aí, vamos fazer um aborto”. O hospital precisa ter estrutura, uma avaliação de equipe, avaliação médica e psicológica”, disse.
Já para o médico Isac Jorge Filho, presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), a não-exigência do boletim de ocorrência para a realização do aborto legal após estupro pode aumentar o número de abortos ilegais. Para ele, a norma representa um sério risco à saúde pública.
“Os médicos não têm como investigar se a mulher está ou não falando a verdade. Isso é uma coisa muito séria. Pode levar os hospitais a se transformar em uma indústria de abortos.” Segundo ele, o Cremesp vai aguardar a publicação da norma, avaliar o conteúdo e, se não houver a exigência do BO, vai convocar os conselheiros para uma manifestação oficial sobre o assunto.
Na prática, a maioria das mulheres grávidas por estupro vão continuar fazendo o BO por duas razões básicas: porque querem denunciar o seu agressor à polícia ou porque o documento ainda será exigido pelos médicos de alguns dos serviços de aborto legal como segurança, avaliam ginecologistas que atuam na área de violência contra a mulher.
Apesar da norma, cada hospital que oferece o abortamento legal pode criar protocolos próprios e fazer a exigência do BO se julgar necessário. Os médicos defendem a nova norma do Ministério da Saúde por entenderem que ela apenas cumpre o que está no Código Penal, desde 1940.
Segundo o médico Jeferson Drezê, do serviço de aborto legal do hospital Pérola Byngton, nos últimos dez anos, dos cerca de 800 casos que atendeu, apenas uma mulher não tinha o BO porque o estuprador era um familiar.
Ele entende que a mulher vítima de estupro não seja obrigada a registrar BO, e o profissional de saúde não pode negar o aborto por essa razão. “A lei penal lhe dá esse direito. Se querem reclamar, que reclamem com quem fez a lei, não com o ministério.”
Para Drezê, a polêmica em torno da norma é um “falso dilema”. “É um absurdo achar que, sem o BO, a mulher vai enganar o médico. Ela está falando a verdade até que se prove o contrário.”
O médico Jorge Andalaft Neto, presidente da comissão de violência sexual e aborto legal da Febrasgo (federação que reúne as sociedades de ginecologia e obstetrícia), afirma que é perceptível quando a mulher é vítima de estupro. “Fica configurado o sofrimento da mulher. É um estado de intenso desarranjo psicológico.”
Ele diz que já atendeu casos de gravidez em que a mulher era deficiente mental ou filha, irmã e até neta do estuprador. “Há casos em que a família não quer denunciar o agressor à polícia. Esse é um direito que deve ser respeitado. É garantido por lei”.
SILVANA DE FREITAS
CLÁUDIA COLLUCCI
Leila Suwwan
Folha de S.Paulo