Segundo a pesquisadora, em Salvador, o risco de transmissão é alto porque parte dos consultórios não têm autoclave – equipamento usado para a esterilização de turbinas, motores utilizados em tratamentos dentários. Na pesquisa, realizada em 2002, 34.1% dos 270 profissionais ouvidos não possuíam autoclave. Dentre os que tinham o equipamento, somente 2,2% possuíam quantidades suficientes de turbinas.
Os cirurgiões-dentistas consultados preencheram, anonimamente, um questionário durante campanha de prevenção de hepatites virais do Conselho Regional de Odontologia (CRO-BA). Os dentistas Liliane Lins e Antônio Fernando Pereira Falcão coordenaram o levantamento e garantem que os dados continuam atuais mesmo três anos após a pesquisa.
Bancadas, cuspideiras, sugadores, turbinas, brocas, espelho odontológico e fórceps, entre outros equipamentos usados pelo dentista em procedimentos como extrações, restaurações, canais, implantes e outras cirurgias, devem passar por desinfecção entre um atendimento e outro (veja quadro).
Essas medidas demandam tempo, o que significa um intervalo maior entre os
atendimentos. “Alguns planos de saúde odontológica pagam apenas R$ 4,89 por uma consulta. Isso faz com que o profissional tenha que fazer mais atendimentos do que o normal. Só que precisamos de, pelo menos, 10 minutos entre um e outro para fazer a desinfecção correta dos materiais”, ressalta a dentista Liliane Lins, mestre em estomatologia, doutora em patologia humana.
O tempo entre atendimentos varia de acordo com o equipamento, a quantidade de exemplares de cada instrumento e o número de pacientes. “Para atender cinco pacientes, por exemplo, o mínimo de turbinas é sete”, diz Liliane Lins.
Fiscalização – A Secretaria Municipal da Saúde é responsável pela fiscalização dos consultórios odontológicos desde 2002. São 3.383 odontólogos cadastrados. Até então, apenas 612 clínicas foram vistoriadas, sendo que cinco delas foram interditadas por prática ilegal da profissão. Nas inspeções, a existência da autoclave e todos os procedimentos de biossegurança são exigidos. No entanto, a secretaria não reuniu os dados de todas as inspeções e, por isso, não há estatísticas e dados sobre o número de consultórios onde não foram encontradas autoclaves.
“A cultura que se estabelece desde a universidade é de pouca preocupação com a biossegurança. Os estudantes trabalham com apenas uma turbina para atender os pacientes”, observa Liliane Lins.
A diretora da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal da Bahia, Maria Isabel Viana, discorda da pesquisadora, ressaltando que a biossegurança é tema de matérias do currículo e que as recomendações do Ministério da Saúde quanto à desinfecção dos instrumentos é seguida. A faculdade tem quatro autoclaves e atende 400 pacientes gratuitamente todos os dias, com capacidade instalada de 160 consultórios.
“Pesquisas sobre proteção à saúde do profissional e dos pacientes são relativamente novas se comparadas aos conteúdos de matérias clássicas dos currículos das faculdades de odontologia. Acredito que, com o tempo, a preocupação com biossegurança aumente e pesquisas semelhantes à realizada por Liliane Lins possam, nos próximos anos, revelar resultados mais positivos”, observa o presidente do Conselho Regional de Odontologia (CRO-BA), Paulo Alcântara.
Dificuldade para comprar equipamentos
Dentre cinco dentistas ouvidos pela equipe de reportagem, um deles disse não usar autoclave. A importância do equipamento é reconhecida, mas as dificuldades da profissão são apontadas como agravantes. A autoclave custa entre R$ 1,8 mil (capacidade para 12 litros) e R$ 2,5 mil (21 litros). O preço da estufa, comumente utilizada, é de cerca de R$ 500.
“Sabemos que muitos profissionais não usam os equipamentos de esterilização e se valem do álcool 70, que não é suficiente. É uma questão de consciência de cada um. No meu consultório, esterilizo corretamente e faço o exame bacteriológico da autoclave”, aponta a dentista Sandra Fernandez.
Os baixos valores pagos pelos planos de saúde explicam das dificuldades financeiras enfrentadas pela categoria, na avaliação da cirurgiã Tereza Helena Pedreira. “O plano paga R$ 12 por uma restauração. Há muito dentista no mercado, então a concorrência é grande. Muitos não têm dinheiro para comprar todos os equipamentos necessários”, afirma.
O dentista P. (pediu para não ter a identidade revelada), admite que não tem autoclave no consultório que mantém no bairro da Liberdade. “Coloco o que posso na estufa. As outras peças, limpo com álcool. Estou poupando dinheiro para investir na autoclave”, comentou.
SAIBA MAIS
O cirurgião-dentista deve seguir os procedimentos de desinfecção e esterilização dos equipamentos
Autoclave
Autoclaves são equipamentos que fazem a esterilização dos motores odontológicos.
As mais modernas informam data, horário da esterilização e nome do operador, e precisam passar por exames bacteriológicos periódicos. O paciente pode exigir que a abertura da embalagem do material esterilizado seja feita em sua frente.
Normas de biossegurança
Para os motores: devem ser lavados com água e detergente, secados, embalados para esterilização e lubrificados posteriormente.
Observe se seu dentista:
Utiliza, junto com os auxiliares e recepcionistas, equipamentos de proteção individual (EPIs)
Troca luva entre cada paciente
Manipula produtos com luva plástica descartável
Substitui máscaras, aventais e gorros, caso estejam sujos
Desinfetar os óculos
Rotinas para início do atendimento
Colocar barreiras (proteção plástica) nos instrumentos
Desinfetar a seringa tríplice (que fornece água e ar) antes de colocar a barreira
Colocar água potável com cloro no reservatório
Colocar os tubetes de anestésico no anti-séptico
Colocar anti-séptico em copo descartável para bochecho
Abrir pacotes estéreis sobre superfície estéril
Rotina para o final do atendimento
Esvaziar o reservatório de água
Retirar as barreiras e descartá-las
Limpar e desinfetar o equipamento
Retirar o ralo da unidade auxiliar, lavá-lo e desinfetá-lo
Limpar o chão
Desprezar os resíduos em sacos de lixo hospitalar
Colocar perfurocortantes em local apropriado Próteses
Devem ficar 10 minutos em solução de hipoclorito 1% (água sanitária), antes de serem colocadas nos pacientes
Hepatite C
O que é – Inflamação do fígado causada pelo vírus da hepatite C (VHC), descoberto em 1989. É a maior causa de indicação para transplante. A mortalidade está entre 1% e 5%. A infecção pelo vírus da hepatite C é uma das maiores causas de doença hepática crônica no mundo.
Transmissão – A hepatite C é transmitida no contato entre o sangue ou secreção corporal contaminada com o sangue, mucosas ou pele machucada. A transmissão materno-fetal é rara e não há registro de casos de transmissão pelo leite materno. Além disso, 20 a 30% dos casos ocorrem sem que se possa demonstrar a via de contaminação.
Sintomas – Na maioria dos casos, não há sintomas na fase aguda. Em 80% dos pacientes, a forma crônica será descoberta durante exames com outros fins. Há casos que aparecem décadas após a contaminação, por meio de doenças como cirrose e câncer de fígado. Se não detectada precocemente, pode evoluir para formas crônicas, podendo causar danos hepáticos, a exemplo de cirrose e câncer. São responsáveis por 70% das indicações de transplante de fígado.
Tratamento – Na fase aguda, o tratamento diminui o risco de evolução para o quadro crônico, o que reduz as chances de cirrose e câncer de fígado. O trato da forma crônica não tem resultados satisfatórios e o sucesso depende do genótipo do vírus, carga viral e estágio da doença.
Prevenção – A presença do vírus na saliva não depende de doença periodontal (na gengiva) ou outra patologia bucal, ou seja, pessoas com a boca saudável e infectadas pela hepatite C têm o vírus na saliva. A pesquisa de Liliane Lins detectou a hepatite C na saliva de pacientes com altas e baixas cargas virais. A prevenção de doenças bucais nas famílias onde não-portadores convivem com portadores é fundamental. Uma das medidas é não compartilhar escovas dentais: “Se não há porta de entrada, o nível de transmissão é mais baixo”, alerta a pesquisadora.
Resultados da pesquisa com cirurgiões-dentistas de Salvador
Uso de gorro 78,1% usam
Uso de luva 99,3% usam
Uso de máscara 97% usam
Protetor de seringa tríplice(de onde saem água e ar) 67% usam
Filme de pvc 65,2% usam
Fonte:Pesquisa – Liliane Lins, Cirurgiã-dentista, Mestre em Estomatologia, Doutora em Patologia Humana, Professora Titular da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Estomatologista do Serviço de Transplante Hepático.
Sylvia Verônica