1978. Luciano Santana, maior produtor individual de cacau do Brasil, prefeito de Camacã, nadava em dinheiro, dele e da prefeitura. O município, no miolo da Região Cacaueira, 90 quilômetros ao sul de Itabuna, produzia 1,2 milhão de arrobas por ano. Era tido como o mais rico do Estado. Se precisava comprar uma patrol, o prefeito corria uma lista na rua, o dinheiro saía, doado pelo povo. Luciano bradava orgulhoso: “Só não administra Camacã bem quem não quer”.
2005. Débora Carvalho Borges Santos (PTdoB), professora e prefeita, vive uma situação oposta: “Somos referência em prostituição infantil. Vivemos uma situação tão grave que a cidade registra de dois a três assaltos por dia. Estão negando ao nosso povo o mínimo de decência para sobreviver. É tão ruim, tão triste, que minha grande obra é botar feijão nas escolas para as crianças comerem. Se eu não fizer isso, morrem de fome”.
E agora, quando o município mais precisa, paga caríssimo, em dinheiro vivo, algo em torno de R$ 250 mil por mês, justamente porque sofreu o problema.
Explicando: a partilha do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), definida por número de habitantes, é feita pelo Tribunal de Contas da União com base nos censos demográficos de 1990 e 2000. A partir de tais números o IBGE faz uma projeção sobre as expectativas de crescimento populacional de cada município. No caso de Camacã, como nos demais municípios da região cacaueira, onde a miséria ocupou o lugar da riqueza, os números que definem o valor dos repasses foram obtidos em pleno êxodo gerado pela crise do cacau.
FAVELAS – Hoje, o próprio cacau já dá sinais de recuperação, mas a população só cai, porque a contagem não é real, e sim uma perspectiva estatística. E o dinheiro também, ampliando o espectro da pobreza. “Só com o dinheiro da perda eu compraria uma patrol para recuperar as estradas vicinais, o que não posso fazer, agravando ainda mais o problema”, fala a prefeita.
“Quando cheguei aqui, em 1977, até o borracheiro da cidade tinha um Maverick. E não trabalhava fim de semana porque ia à praia. Com a crise do cacau, a parte da população que não fugiu migrou da zona rural para a cidade. Só de favelas nas mais precárias condições de habitação temos quatro. Uma delas, a Joana Angélica, estamos recuperando com a construção de 185 casas, graças ao governo do Estado. Vivemos assim, somos um município tutelado, sem dinheiro para nada”.
Camacã despencou de um coeficiente de FPM de 2.6 para 1.4. Ou seja, perdeu em arrecadação mais de 80%. É o caso mais gritante, mas não único. No Estado, 191 outros municípios, segundo dados da União dos Municípios da Bahia (UPB), passam por problemas idênticos. Gradativamente vêm sofrendo o que chamam tecnicamente “perda populacional”, embora as evidências apontem na mesma direção, são números que refletem a realidade de um momento que já não existe.
FALTA DE SENSO – “Já caímos do coeficiente de 1.2 para 1.0. Tínhamos 18 mil habitantes. Agora, com a perda, estamos com 15.600, segundo as estimativas do IBGE. Como isso é possível se o município tem um eleitorado de 13.600 pessoas e só na rede municipal de ensino há quatro mil alunos matriculados? Só aí há 17.600 habitantes, sem contar idosos e crianças que estão na faixa etária ainda não escolar. Isso é que eu chamo de uma falta de senso e censo”, ironiza o prefeito Ito Meirelles (PRP), de Taperoá, município do Baixo Sul, no norte da região cacaueira.
“É uma espécie de rolo compressor. As obrigações sempre aumentam e as despesas sempre diminuem. A cidade cresce, os povoados crescem, aumentam as demandas de esgotos, de lixo, de todos os serviços. E todos os anos as prefeituras sofrem o impacto do reajuste do salário mínimo. Como poderemos seguir assim?”, indaga o prefeito de Cairu (PP), Hildécio Meirelles, município turístico que fica na região cacaueira, embora não produza cacau.
Cairu caiu de 0.8 para 0.6, o mínimo. Ou seja, não tem mais para onde descer. Segundo as estatísticas da UPB, 90% dos municípios baianos, exatamente os menores, com poucas condições econômicas de manter arrecadações próprias, têm no FPM sua grande fonte de receita.
Projetos pedem a correção
Dos 5.507 municípios brasileiros 1.496 estão enfrentando problemas de perdas populacionais. Deles, 77,48% têm população inferior a 23.772, o que quer dizer que pegam os quatro coeficientes mais baixos de repasses.
Na situação atual, o dinheiro que os municípios perdedores pagam, vai para os outros municípios do mesmo Estado que apresentaram crescimento populacional.
Estudos da UPB mostram que dos 417 municípios baianos há muito mais perdedores do que ganhadores: 191 perdem dinheiro, 34 ganham e 195 permanecem inalterados. Segundo o IBGE, os pólos mais importantes de perdas populacionais são os corredores de tráfego entre Minas e Bahia, nas BRs 101 e 116.
Peso –Nos grandes municípios o peso do FPM na arrecadação não tem a mesma dimensão dos pequenos, mas eles também sofrem.
Segundo dados do IBGE, entre os grandes, estão Ilhéus, na Bahia, Nilópolis, no Rio de Janeiro, e São Caetano, em São Paulo.
Dois projetos de lei, um de autoria do deputado baiano José Carlos Araújo (PFL), e outro do piauiense Júlio César (PMDB), tramitam na Câmara dos Deputados na tentativa de mudar o quadro.
Redutor – O deputado baiano propõe, em síntese, que o prazo para o pagamento do redutor se amplie até 2013, o que implicaria queda dos percentuais de descontos atuais.
Os projetos, em verdade, acodem a emergência, contida na pauta de reivindicações da Frente Nacional de Prefeitos. Ou seja, os prefeitos em geral são a favor da correção de prumo. Para entender melhor: o redutor é o dinheiro que, em tese, o município recebeu sem ter direito. Ou seja, o repasse feito não correspondia ao número de habitantes, conforme as estatísticas oficiais.
Como não há contagem populacional, e a perspectiva estatística de queda é progressiva, a tendência é o agravamento do problema.
Problemas decorrem das crises agrícolas, diz prefeito
Governador Mangabeira, município próximo a Cruz das Almas, no Recôncavo, é um dos municípios fora da região cacaueira que estão ficando mais pobres. Em 1991 tinha uma população de 17.859 habitantes. O Censo de 2000 apontou 17.163. A partir daí a queda progressiva resultou, no ano passado, em 16.809, o que significa um baque violento nos cofres municipais. “De 2001 para cá pagamos nada menos que R$ 1.744.015,90. Só em janeiro último pagamos R$ 72.671”, fala o prefeito Antonio Pimentel (PL).
Ele lembra que nesse tipo de perspectiva há uma questão perversa. “Quanto mais a população cai nas estatísticas, mas o município aumenta o redutor financeiro (a quantia debitada na cota do FPM).
Em 2001 pagamos R$ 299.919. Em 2004 esse valor subiu para R$ 864.492. A cada ano vamos ficando mais pobres”, ressalta ele, lembrando outro detalhe complicador, a falta da contagem populacional, feita a cada cinco anos, que este ano o governo federal não realizou.
“Se a contagem tivesse sido feita, teríamos as condições de amenizar a situação já no próximo ano. Como isso não aconteceu, a expectativa é a de que só vá a correção em 2011, porque o Censo de 2010 só produzirá efeitos no ano seguinte. Até lá, certamente alguns prefeitos, se não quiserem ver suas prefeituras inviabilizadas, vão ter que impor pesados sofrimentos aos municípes”, observa.
Conta Pimentel, que também é tesoureiro da UPB, que no ano passado foi forçado a fechar um posto de saúde e demitir 80 dos 670 funcionários que a prefeitura tem. Pimentel, que é agrônomo, afirma que a base do problema está no êxodo rural provocado por problemas na agricultura. Da mesma forma que o cacau, outras regiões do Estado sofreram crises no setor, como o fumo no Recôncavo, área em que está Mangabeira, o sisal na região de Serrinha e a mamona na Chapada Diamantina.
“Aliado a isso, na década passada, o governo extinguiu os subsídios agrícolas, que seguravam o homem no campo. Mesmo que o plantio não tivesse sucesso o Proagro garantia o pagamento dos financiamentos. Com o fim dos incentivos os habitantes da zona rural correram para as cidades, em busca de empregos”, observa. Ele lembra que se criou um cículo vicioso: a zona rural se esvazia, as cidades aumentam a pobreza na periferia, enquanto as rendas das prefeituras caem.
Levi Vasconcelos
A Tarde on line