Dama da baía

Catarina Paraguaçu, primeira matriarca da Bahia, é o símbolo da miscigenação na América Portuguesa

Convertida ao catolicismo, Catarina Paraguaçu ganhou um nome francês e passou a ensinar às índias a cultura branca

Ela foi a primeira matriarca da Bahia, verdadeira senhora da terra e mar de Todos os Santos. Bela índia tupinambá, Paraguaçu é o símbolo da miscigenação na América Portuguesa. Nua, corria livre as praias de Salvador até que um encontro mudaria sua vida, os destinos de sua tribo e de um país que mais tarde se chamaria Brasil. Um encontro com um homem diferente, de pele branca, estranhamente coberta por muitos panos. Ele veio do mar como um peixe, como um deus, como um Caramuru. Era o primeiro homem assim a chegar por essas terras, entre 1509 e 1511, e atendia pelo nome de Diogo Álvares. Logo eles se apaixonariam, teriam muitos filhos, constituiriam a primeira família aristocrática do Recôncavo, e simbolizariam a integração das raças que viria a formar o povo brasileiro.

Existem diferentes analogias ao nome Paraguaçu. O reconhecido historiador Teodoro Sampaio acreditava ser “aldeia grande”. O antropólogo Thales de Azevedo se referia a “grinalda grande”. Já a tupinóloga e historiadora Consuelo Pondé de Sena fala em “rio caudaloso grande”. “Pará significa rio caudaloso; guaçu significa grande”, explica a especialista. Seja como for, foi do ventre da grande Paraguaçu, filha do chefe de sua aldeia, o cacique Taparica, que surgiram os primeiros luso-tupinambás para ocupar a numerosa aldeia euro-indígena que viria a ser matriz de Salvador, primeira capital do Brasil.

Até hoje ninguém explicou ao certo como e por que o náufrago português Diogo Álvares veio parar em Salvador, mas sabe-se que foi avistado pelos tupinambás pela primeira vez na praia defronte ao atual Largo da Mariquita, no Rio Vermelho. O próprio nome Mariquita é uma corruptela de Mairaquiquiig, que na língua tupi significa “naufrágio dos franceses”. O termo pressupõe, como acreditam vários historiadores, que Diogo era, na verdade, um agente mercantil a serviço daquele país. Por ter surgido do mar entre as pedras, os tupinambás lhe deram o nome de Caramuru, pois era assim que se referiam às moréias, peixes que vivem entre as rochas do mar.

Também é uma incógnita o motivo pelo qual Diogo não foi devorado pelos tupinambás, já que era um costume das tribos que habitavam a costa da cidade comer os inimigos e invasores. Diz a lenda que Diogo teria preservado uma espingarda e ao avistar os índios disparou alguns tiros para o alto, o que teria lhe rendido o apelido de “homem do fogo”, ou “filho do trovão”. Mas, embora presentes em algumas crônicas e até poemas quinhentistas, a lenda não foi confirmada e por isso é refutada pela maioria dos pesquisadores.

O certo é que Caramuru deveria ter uma boa lábia, capaz de convencer tupinambás furiosos, franceses gananciosos e portugueses patrícios. E até espanhóis que naufragavam na costa o jovem Diogo Álvares recepcionou em sua aldeia, recebendo por isso uma carta de agradecimento do Rei Carlos V, da Espanha. Era um verdadeiro embaixador do Brasil, num período em que os lusitanos ainda estavam longe de ocupar a Baía de Todos os Santos.

Vila Velha

Logo que se conheceram, a moréia e o grande rio caudaloso foram viver com os tupinambás entre o atual Porto da Barra e o Largo da Vitória, na aldeia então batizada de Vila Velha. Tiveram muitos filhos. As duas primeiras foram casadas com europeus, que seriam acolhidos por Caramuru depois de fugir de São Vicente, onde cometeram um assassinato. Possivelmente este tenha sido o primeiro casamento religioso nessas terras, já que a primeira expedição do governador Tomé de Souza e dos padres Jesuítas só chegaria em 1549 para a fundação da cidade.

Mas Martim Afonso de Souza passava pela segunda vez pela Baía de Todos os Santos em direção às índias, trazendo consigo alguns padres franciscanos, que abençoariam a união. O primeiro casório foi o de Madalena com Afonso Rodrigues, em 1534, e está registrado em uma lápide na igreja matriz da Vitória. Depois, foi a vez da outra filha de Paraguaçu, Felipa, se casar com Paulo Dias Adorno. Do primeiro casal, nasceriam três homens, futuros senhores de engenho na cidade de Cachoeira. Do outro, nasceu Antonio Dias, que se tornaria oficial da Câmara de Salvador anos mais tarde.

Em 1526, Paraguaçu, a heroína tupinambá, embarcava com seu marido para uma viagem à França, onde dois anos depois seria batizada e se casaria na cidade de Saint Malo. Sua certidão de batismo mostra que, em 30 de julho de 1528, receberia o nome de Katherine du Brézil (Catarina do Brasil), em referência à sua madrinha, Katherine des Granches, esposa do navegador Jacques Cartier, explorador do Canadá. Seu padrinho foi o nobre senhor Guyon Jamyn, irmão de Oliver Jamyn, marido de Tomasia Cartier, tia de Jacques. Muitos filhos e filhas viriam depois. Logo viriam também os netos.

À casa de Paraguaçu, na grande aldeia de Vila Velha, estaria ainda reservada um momento grandioso. Em 1549, abrigou a tripulação do primeiro governador do Brasil, Tomé de Sousa, a pedido do rei de Portugal, e, durante alguns meses, ali seria sediada a colônia. Com Tomé de Sousa vieram nobres poderosos, como Garcia D”Ávila, que com suas sesmarias se tornou o maior latifundiário do mundo. O neto de Paraguaçu se casaria com a filha de Garcia D”Ávila, dando origem ao arcabouço aristocrático do recôncavo baiano.

Já convertida ao catolicismo, a velha índia tupinambá passou a ensinar os novos costumes às demais de sua tribo. E de um dia para o outro passaria a ter uma série de sonhos em que apareciam visões de uma mulher que a chamava à praia da Barra. Intrigado, seu marido mandaria vasculhar a área e encontraria uma escultura em madeira de Nossa Senhora, carregando o Jesus menino nos braços. Comovidos com o “milagre”, Caramuru e Paraguaçu mandariam construir a Igreja da Graça, por volta de 1530, para abrigar a imagem santa. É nela que repousam os restos mortais de Catarina do Brasil. Em um grande painel e também no teto da igreja, estão retratadas a visão milagrosa de Paraguaçu.

Depois da morte de Caramuru, por volta de 1557, a viúva Paraguaçu ampliaria ainda mais as suas posses. Além das terras deixadas pelo marido, onde estava situada a Aldeia Vila Velha, a índia tupinambá recebeu do próprio governador Mem de Sá um vasto território que compreendia os atuais bairros da Graça e da Vitória, se tornando uma verdadeira senhora da Bahia. Tudo isso, inclusive a igreja, considerada o primeiro santuário mariano da América, seria doada por Paraguaçu em testamento aos monges beneditinos, em 1587. O testamento original ainda se encontra no Mosteiro de São Bento, fundado em 1582.

Considerada um dos principais símbolos femininos da história do país, por ter exercido um papel fundamental na integração das raças que formaram o povo brasileiro, a tupinambá Catarina Paraguaçu é sempre lembrada como a mãe das mães brasileiras, o esteio e a origem da família no país.

CORREIO DA BAHIA

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