Ao se comemorarem os 150 anos de nascimento da compositora Chiquinha Gonzaga (Francisca Edwiges Neves Gonzaga) e o centenário da primeira marcha carnavalesca composta no Brasil, foi ao ar pela TV uma mini-série constituída de muito bem elaborados capítulos, cujo intuito básico era o de ser fiel à realidade histórica de uma vida conturbada, sofrida, cheia de aventuras e, na seqüência, mostrar fatos insólitos até, e acontecimentos inesperados,
fruto da observância à veracidade registrada nas poucas biografias existentes.
Mas o que houve de mais marcante na série televisiva foi o enfoque (quase panfletário) da redenção da mulher no cenário histórico do Brasil.
Mostrando uma sociedade integralmente voltada aos interesses masculinos, à supremacia do macho, à liberdade quase total deste em detrimento da submissão institucionalizada da fêmea, na sua condição de objeto servil; meramente produtora de condições de base para que o marido e senhor – e só ele – pudesse exercer as funções que a sociedade lhe cobrava.
Não poderá também escapar à nossa análise o fato de ter sido a escravidão o processo operativo da estrutura econômica brasileira até fins do século XIX, consubstanciada numa legislação opressiva, determinista, enfática quanto à vida da sociedade colonial.
Nela, cada personagem tinha um lugar predeterminado, indiscutivelmente estabelecido e acatado sem qualquer direito a contestação ou crítica por parte de quem quer que fosse.
Desta forma, cabia ao homem o direito à propriedade, às finanças, à mulher e aos filhos.
Nesse cenário oprimente é que vai se inserir Chiquinha Gonzaga (nascida a 17 de outubro de 1847): E ainda em condição piorada pela origem: a mãe era pobre, mestiça e solteira. Chiquinha fora fruto de uma paixão: a de um jovem militar cuja aventura, no entanto, prolongou-se por toda a vida, sem, contudo, jamais chegar a legitimar-se.
O jovem José Basileu Neves Gonzaga reconheceu a filha, embora trigueirinha, o que, na época significaria condição social inferior, dando-lhe um nome e a educação de uma boa moça de sociedade; inclusive tendo o cuidado de propiciar-lhe o estudo de um instrumento musical – o piano.
Mas a partir do momento em que a moça começa mostrar pendores para a arte dos sons, enfaticamente desaprova essa ousadia, esse desatino.
Mais do que rápido, aos 16 anos, impõe-lhe o casamento com um jovem também militar, de boa família. Este faz eco ao sogro, desaprovando terminantemente qualquer interesse mais sério por aquilo que era sinônimo de boemia, de libertinagem, de desonestidade até. A música não tinha lugar na vida de uma prendada senhora cuja função era a de servir ao homem ao qual jurara dedicação
total no altar do casamento.
O casamento fracassou.. E para espanto de toda a família, desespero do marido e abatimento profundo do pai (que nem no leito de morte perdoou a filha), Da. Francisca Gonzaga do Amaral abandonou o marido. O escândalo estava armado: mulher que abandonava o marido era considerada leviana, perdida, quase na condição de prostituta.
Retornemos agora aos capítulos da mini-série da Globo: o primeiro escândalo é focalizado como meramente corriqueiro (nos dias de hoje).
Mas nos episódios que se seguem, a sucessão de surpresas correspondem à quase absoluta realidade histórica: o caso com o engenheiro João Batista de Carvalho, com o qual vem a ter o terceiro filho, a breve duração desse relacionamento, a vida humilde num cômodo barato de aluguel, o quase romance com o flautista Joaquim Antônio da Silva Callado, a frenética paixão pelo grande maestro Carlos Gomes (que a TV mostrou como efetivo relacionamento, mas a verdadeira história não confirma este fato) e finalmente a aceitação de um companheiro extremamente jovem (ela com 52 anos, ele apenas com 16) com o qual viveu por mais de 35 anos – até sua morte em 1935.
Mas, como observamos, a mini-série centrou sua atenção na luta de uma mulher -pária da sociedade – que acreditava naquilo que demoraria para acontecer: a igualdade dos sexos, a ascensão em importância de quem acreditava que a mulher tinha os mesmos direitos.
Isto é mostrado pela criação de personagens fictícias que enfatizam e enriquecem a cena: uma vizinha submissa que sucumbe, dançarinas indiferentes aos preconceitos, outra personagem que abandona o marido opressor, incentivada pela protagonista da mini-série, uma jovem explorada e prostituída por um meliante, também auxiliada por Chiquinha Gonzaga.
O texto resgata e enaltece a força extraordinária de uma mulher que, suplantando o sofrimento a que é submetida, impõe sua vocação artística e a liberdade pessoal.
E o que é mais importante, ressaltamos mais uma vez: a veracidade dos fatos. Chiquinha Gonzaga foi abolicionista, feminista, republicana, lutou pelos direitos autorais dos artistas, fundando a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) existente até hoje existe. Comprou com imenso sacrifício a alforria de um escravo, vendendo na rua suas músicas. Foi no Brasil a primeira mulher a escrever música para o teatro, a primeira a reger uma orquestra, a primeira a escrever uma marcha carnavalesca (Ó Abre Alas), e, com Antônio Callado, participou da criação do gênero Choro.
Mas somente em 1883 conseguiu ver sua obra nos palcos (só os homens, até então, poderiam escrever para o teatro): encomenda de uma companhia portuguesa de operetas em turnê pelo Brasil.
E em 1885 atreveu-se a reger uma orquestra integrada por músicos da banda da Polícia Militar do Rio de janeiro – era a primeira vez que uma mulher empunhava uma batuta no Brasil.
Nada intimidava essa maravilhosa criatura que parece ter antecipado a sua época; mas não: ela veio no momento certo; o seu pioneirismo é abriu as portas para a redenção.
Valeu a pena ter havido uma Chiquinha Gonzaga e, para nós músicos, é um orgulho saber que sua bandeira fora a nossa arte.
Embora tenha aperfeiçoado seus estudos de piano com o insigne compositor Artur Napoleão, a música de Chiquinha Gonzaga era estritamente voltada para as tendências populares. Compôs canções, choros, tangos, marchas, mas principalmente polcas e valsas. Várias dessas obras conquistaram grande popularidade. Estruturalmente são peças simples, curtas, priorizando a linha melódica, geralmente em função da poesia – quase a totalidade das obras destina-se ao canto com acompanhamento pianístico.
Ressalta, no entanto, a beleza de muitas dessas linhas melódicas, algumas delas primorosas, como é o caso de Lua Branca, que nos encantam, nos levam a retê-las na memória e a repeti-las incansavelmente. Ou, ainda, quanto ao ritmo característico do choro ou do tango, tendo-se eternizado o famoso Corta-Jaca, legítimo documento do nosso acervo popular, tão fascinante e envolvente.
Chiquinha Gonzaga é hoje um dos nomes mais importantes da história da nossa música. Pelo seu pioneirismo e pela beleza dos seus trabalhos merece toda a nossa atenção e respeito. Inclusive o dos jovens músicos que tem o dever de conhecer a vida e a obra desta empolgante compositora patrícia.
CRONOLOGIA
1847 – Nasce no Rio de janeiro a 17 de outubro.
1863 – Casa-se com Jacinto Ribeiro do Amaral.
1864 – Nasce seu primeiro filho: João Gualberto.
1865 – Nasce sua filha Maria.
1866 – Embarca com o marido no navio São Paulo, por este fretado, que transporta tropas para a Guerra do Paraguai.
1869 – Abandona o marido. Conhece o flautista Joaquim Antônio Callado.
1876 – Vive com o engenheiro João Batista de Carvalho. Nasce a filha Alice.
1877 – Primeira obra editada: a polca Atraente, que em nove meses chega à 15ª edição.
1879 – Começa a instrumentar, com autodidatismo.
1880 – Anuncia-se publicamente como professora de várias matérias.
1883 – Tentativa frustrada de musicar libreto de Arthur Azevedo (a produção teatral não aceita uma mulher como autora da música).
1885 – Estréia como maestrina.
1888 – Extinção da escravidão no Brasil, pela qual durante tantos anos Chiquinha Gonzaga lutara. 1889 – Proclamação da República, outro anseio da compositora.
1890 – Nasce a primeira neta.
1891 – Falecimento do pai.
1896 – Falecimento de Rosa, sua mãe.
1899 – Carnaval. Compõe Ó Abre las. Conhece João Batista, jovem português de 16 anos que seria seu companheiro até o fim da vida.
1902 – Viaja para a Europa.
1904 – Segunda viagem à Europa.
1906 – Instala-se em Portugal.
1909 – Retorno ao Brasil.
1911 – Inicia intensa atividade musicando peças teatrais para os espetáculos por sessões dos cine-teatros da Praça Tiradentes (RJ).
1912 – Estréia Forrobodó, seu maior sucesso teatral.
1913 – Deflagra campanha em defesa pelo direito autoral dos compositores e teatrólogos.
1914 – Lançamento, com grande sucesso, do tango Corta-Jaca.
1917 – Participa da fundação da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais.
1919 – Grande éxito da peça de costumes regionais Juriti.
1925 – Recebe homenagens consagradoras da SBAT e reconhecimento do país inteiro.
1933 – Falecimento do filho João Gualberto em São Paulo. Aos 85 anos escreve sua última música: Maria.
1934 – Falecimento da filha Maria.
1935 – Morre no dia 28 de fevereiro.
Dois dias depois realiza-se o primeiro concurso oficial das escolas de samba.