Entendo agora porque o sobrinho de um velho tio meu retardou tanto o retorno ao Rio
de Janeiro. Veio passar quinze dias em Ilhéus e, com o correr do tempo, já não
falava em voltar. Tudo o encantava, principalmente o Bataclan com suas mulheres
faceiras, umas chegadas de Buenos Aires, outras de Paris, Sergipe, Varsóvia e sul do
Brasil, todas habituadas a usar meias mas querendo, sobretudo, fazer um pé-de-meia.
O Bataclan há de ter futucado muito a imaginação e os sentidos do rapaz, da mesma
forma que mexeu com o mecanismo dos desejos de Jorge Amado, então em plena
adolescência. No romance São Jorge dos Ilhéus ele cita o cabaré pelo menos cinco
vezes. Ali, aos compassos de uma orquestra chamada jazz, foi rainha das noites uma
certa Agripina, “magra e viciosa, que assassinava tangos e apaixonava estudantes
românticos. Puseram-lhe o apelido de Vampireza, devido a seu olhar entornado…”,
testemunhou o romancista, e longe de nós questionar-lhe a memória esperta.
Meu tio, pobre de recursos, não precisou dar ao moço do Rio de Janeiro camarote em
teatro, nem charutos do Recôncavo, nem moças, nem jantares em restaurantes de luxo.
Havia sol, havia cerveja, havia o democrático Bataclan, havia sorvetes de frutas
tropicais, havia moças nas ruas e janelas – e no estuário os botos singravam ao lado
das canoas a motor, que eram os besouros rumo às areias do Pontal e aos mistérios do
Morro de Pernambuco.
O rapaz foi-se deixando ficar. Navios atracavam no porto, perto do Sítio dos
Pimenta, navios largavam – e ele, Silvano, em terra firme, para desespero crescente
do meu tio, que tinha uma fabriqueta de chocolate em pó no quintal e não suportava o
ônus da hospedagem permanente.
A situação lembrava uma fábula de Liev Tolstói, aquela em que um dervixe se hospeda
em casa de um mujique e lhe esgotava os parcos haveres, até que o mujique, já sem
ter o que cozinhar para o almoço, desperta-o e avisa que é hora de partir, que o
galo já cantou. “Ah, ainda tens um galo”, atesta o santo homem, e recai no sono dos
justos.
Meu tio ignorava a fábula, não era dado a literaturas. Pessoa prática, com os pés no
chão. Só avançava até o comprimento do braço estendido. Entrava dia e saía dia – e
ei-lo a falar em navios e horários. Indiretas inúteis, porque Silvano estava quedo,
ledo e surdo. Os manguezais, o estuário varrido pelo sol, as moças namoradeiras, as
matinês no cinema e o Bataclan eram apelos muito fortes. Tinha de dar-lhes
prioridade. Depois, mais adiante, pensaria no retorno ao enfadonho Rio de Janeiro.
Partiu então o meu tio para o sacrifício. Comprou passagem de volta para Silvano,
creio que no Comandante Capela. Já que o sobrinho não se dispunha a sair barra a
fora, forçaria a barra. Na véspera, alertou-o:
– Você parte amanhã.
– Amanhã? – ecoou Silvano.
E foi a uma pescaria no Cururupe. Na sua ausência, assessorado pela mulher, meu tio
arrumou-lhe a mala, deixou nu em pelo o quarto ocupado por Silvano.
Acordado com vários safanões, na manhã seguinte, Silvano resignou-se ao banho, tomou
o último café com fruta-pão e ovos estrelados sobre talhadas de cuscuz, debaixo do
olhar severo do tio, que lhe pisava os calcanhares. Teve de se despedir, teve de se
arrastar a passado mole para o porto e se aprestar para a partida iminente.
Passageiros já se debruçavam no convés do Comandante Capela.
– Pois então, adeus – disse meu tio.
– Calma – disse Silvano.
– O vapor já vai partir – apressou meu tio.
– Navio não sai antes de apitar – ponderou Silvano.
Estava de olho numa rapariga vistosa, metida em sedas e trescalando perfumes, que
fora se despedir de um senhor ventrudo, provavelmente seu coronel. O navio começou a
se afastar do ancoradouro.
– Esperem! – berrou meu tio, correndo para o mar.
– E dali, da beira, sapateou, berrou e vociferou. Faltava um passageiro. A
tripulação atirou uma corda grossa e meu tio, com ajuda de outros, içou Silvano. No
afã do embarque, a mala se abriu, roupas íntimas de Silvano caíram ao mar.
– Tenho de pegar as roupas – gritou Silvano.
– Eu mando por um portador – prometeu meu tio.
– Afinal, puxaram o passageiro para bordo.
– Adeus Silvano.
– Adeus, tio Zeca. E obrigado – resmungou Silvano.
– Boa viagem.
– Obrigado, tio.
– O Rio é a Cidade Maravilhosa. Fique por lá, meu rapaz, e estude com afinco –
recomendou meu tio.
A resposta de Silvano, se houve, foi abafada pelo apito, o último do Comandante
Capela no meio do estuário, já então escoltado pelos célebres botos saltadores do
Condado de Ilhéus.
“Os manguezais, o estuário varrido pelo sol, as moças namoradeiras, as matinês no
cinema e o Bataclan eram apelos muito fortes”