Mas é julgando competições que Lapo Coutinho vem se destacando no cenário internacional. Ele foi eleito o melhor juiz da ASP havaiana nos últimos três anos e está na liderança pelo prêmio deste ano. O bom desempenho do baiano lhe rendeu convites para julgar as etapas do WCT 2003 nas Ilhas Fiji e no Tahiti, onde agora em março nasce seu quarto filho, cujo nome será Manahere.
A moral de Coutinho é tanta no Hawaii que ele conseguiu a façanha de “fechar” Pipeline quebrando com 10 pés para uma competição somente entre brasileiros, em 1988.
Em entrevista exclusiva, Lapo fala sobre sua vida no Hawaii, competições, localismo havaiano e os brazucas que freqüentam o North Shore.
Quando você começou a pegar onda e como surgiu sua paixão pelo surf?
Morava em frente à praia da Onda, em Ondina, onde comecei a surfar com pranchas de isopor e de madeirite, entre 67 e 69. Desde muito cedo adorava pegar onda de peito e de isopor. Botava quilha no isopor, pintava em cima para enfeitar e para não assar a pele e tentava surfar ajoelhado e em pé. Quando vi o primeiro pranchão e as primeiras fotos numa revista gringa, me apaixonei pelo esporte. Mas foi em 1970 que comecei a levar o surf a sério e a pegar onda com pranchas boas, de fibra de vidro, feitas pelo Gabriel Moraes, que tinha a marca Haty.
Quais picos você mais freqüentava?
Como não tínhamos carro nem idade para pegar onda no litoral norte de Salvador, onde existem picos mais constantes, surfávamos nas praias perto de casa, como Farol da Barra, Paciência, Quebra Côco e Pituba, além da praia da Onda.
Quando você decidiu se mudar para o Hawaii? Por quê?
Decidi me mudar em 1980 porque, em relação ao mundo, o surf passava por uma fase muito ruim no Brasil. Não pagaram a premiação do último Waimea 5000 no Rio de Janeiro para a ASP e fomos praticamente vetados do Circuito Mundial. A revista Brasil Surf faliu e com isto todos os patrocinadores da época, que eram fortíssimos, como Volkswagen, Antárctica, Brahma, Banco do Brasil, Banco Econômico e outros, retiraram suas cotas, pois não tínhamos mais eventos internacionais, nem meios de divulgação. Já estava casado, com filho, e achava que já tinha passado minha oportunidade de competir, então decidi que a única forma de pegar ondas boas era ir estudar no Hawaii, onde me formei em bacharelado Ciência Animal, pensando em um dia ajudar meu pai e meu tio na fazenda.
Você continua casado? Está com quantos filhos?
Não, estou solteiro. Mas meu coração já tem dona, estou sempre amando alguém e a vida. Prefiro não citar quem é, porque não dá sorte. Tenho três filhos, Elsimar Neto, de 24 anos, Charles, 18, e Lapo Gabriel, o Lapinho, que está com 10 anos. Vou ganhar mais um agora em março, pois minha ex-namorada descobriu que estava grávida logo depois que terminamos. Mas nosso relacionamento é só de amizade, somos bons amigos e vamos criar este filho numa boa. Ela mora no Tahiti e o garoto vai se chamar Manahere, que significa espírito ou poder do amor (mana = poder, here = amor).
Foi difícil se adaptar ao arquipélago havaiano? E para sua família?
Não. Amo muito o Hawaii e sempre fui apaixonado pelos verdadeiros locais e pelas ondas, este lugar é mágico. Logo que me mudei, vim com minha primeira mulher e um filho e tive outro aqui, o Charles. Isto facilitava muito a distância e qualquer dificuldade. Só sinto saudade de minha família e de meus verdadeiros amigos. Meu filho Lapinho vem todo ano, e também vou ao Brasil visitá-los, o que alivia um pouco.
Qual o conselho que você daria para os surfistas brasileiros que pensam em largar tudo para tentar a vida no Hawaii?
Venha disposto a fazer de tudo para sobreviver e não tenha pressa para que as coisas dêem certas. Se possível, chegue com um visto de estudante, pois é importante no momento. Aprenda o máximo de inglês que puder e acredite nos seus sonhos.
O mercado de trabalho anda complicado por aí? Você já está estabilizado financeiramente?
Estou longe de estar estabilizado, porque insisto em ganhar pouco e só fazer o que gosto. Para quem está legal no país, se quiser trabalhar mesmo dá para arrumar emprego fácil e ganhar bem. Para quem não está legal é um pouco mais complicado, mas dá para sobreviver.
Seus pais sempre apoiaram sua dedicação ao surf? Você chegou sofreu muitas cobranças por ser filho de um renomado cientista?
Meus pais sempre acreditaram e me deram força. Porém, por sempre ter sido tão difícil sobreviver do surf, e pela imagem muito forte de drogados que nossa geração transmitia à sociedade, eles sempre quiseram que eu procurasse algo mais estável e seguro. Isto é natural, mas se não fosse pelo apoio financeiro de meu pai, que praticamente criou e educou meus filhos e me ajuda até hoje, nunca teria realizado meus sonhos e não viveria só do surf, como acontece atualmente.
Quais os trabalhos que você já exerceu?
Já fiz de tudo para tentar sobreviver no Brasil e aqui no Hawaii. Na Bahia, tive a primeira escolinha de surf da cidade de Ilhéus, onde tive também uma barraca de praia. Já trabalhei com turismo, já fui dono de bar e restaurante junto com minha irmã, gerente de cozinha do Beach Park de Fortaleza (CE)… Aqui, fui entregador de pizza, carpinteiro, gerente de restaurante e fast-food, dei aulas de windsurf e trabalhei como capataz nas fazendas de gado e camarão da universidade. Se quisesse, teria um emprego bom e ganharia bem, mas com certeza não seria feliz como sou. Amo as coisas que faço.
E os trabalhos ligados ao surf?
Sempre estive envolvido com o surf. Era proprietário da Musa, fábrica de pranchas que dominou o Norte/Nordeste. Laminei e fiz quilhas por mais de 10 anos, e também fiz parte de todas as associações e da Federação Baiana de Surf (FBS), onde fui vice-presidente. Organizei e participei de todos os eventos nas décadas de 70 e 80 na Bahia. Hoje vivo somente do surf. Julgo, trabalho com os computadores da ASP Hawaii, escrevo para um site português e também para a revista Hardcore. Dou aula em duas escolinhas locais, tenho uma marca de roupa, a Da Nuts, que ainda não deu certo, e agora comecei a trabalhar com Frank Dias em filmagens e fotografia de esportes de ação, como surf, tow in e mergulho.
Como você começou a trabalhar como juiz?
Comecei a trabalhar em 75, quando levei Randy Rarick para a Bahia pensando em fazer um Waimea 5000, que acabou não acontecendo. Na época, ele julgou um evento na Pedra do Sal, em Salvador, só com os meninos locais, onde o “Dentinho” ganhou. Depois disto, sempre estive envolvido nos eventos junto a Musa e a Sunsurf, primeira loja de surfwear da Bahia, seja como juiz, patrocinador, organizador ou competindo. Na ASP havaiana e Mundial comecei em 96 e ganhei o prêmio de melhor juiz havaiano nos últimos três anos.
Quais os principais eventos que você já julgou?
Julgo quase tudo aqui no Hawaii. Todo o circuito amador, as competições de Longboard e os eventos especiais em Makaha. Fui convidado para o Eddie Aikau, o Tow In e o Mavericks, que terminaram não acontecendo. Convidaram-me também para julgar o Backdoor Shootout, que também não rolou, porque o mar estava muito grande durante todo o período de espera. Julguei o WQS 6 estrelas em Haleiwa, o Xcel Pro e o Faith Pro, ambos em Sunset, e esta semana o Hansen Energy Pro, em Pipe. Tive uma pequena participação nos WQS julgando algumas baterias e filmando todo o evento para internet. Julguei as etapas do WCT feminino que rolaram em Honolua Bay e fui escolhido nos últimos quatro anos para representar o Hawaii nos mundiais Junior e ISA Games.
Como surgiu este convite para julgar as etapas de Tahiti e Ilhas Fiji?
Surgiu após ter sido head judge nas triagens dos locais em Teahupoo e de outros três eventos no Tahiti no meio do ano. Também porque eu já estaria lá de qualquer jeito este ano e a ASP está sempre tentando economizar. Agora são sete juízes de novo e abriu mais um espaço para juízes locais. Mas acho que só vai dar para julgar Teahupoo, não irei pra Fiji porque tenho que julgar as finais do circuito estadual no Hawaii, no início de junho. Este evento decide o melhor juiz do ano e estou na liderança de novo.
Você concorda que os brasileiros estão sendo mal julgados ou acha que o desempenho deles ainda está longe do ideal?
Se os brasileiros estivessem sendo mal julgados, todo mundo estaria sendo mal julgado. Vi o Neco chegar a duas finais durante o ano, o Yuri ficou em terceiro mês passado no WQS em Sunset. Vi o Renan tirar um 10 no WCT em Pipeline e chegar até a semifinal. O Pigmeu também tirou um dez em Pipe, no WQS do ano passado e o Gouveia fez um 10 no Tahiti. Todo atleta que perde acha que foi mal julgado. Falam muito da preferência dos juízes aos australianos, mas esquecem que nos últimos dez anos só um aussie foi campeão mundial, o Occy, e somente dois havaianos, Andy e Sunny, o resto foi o Kelly Slater, que sem dúvida mereceu. Teve também o C.J. Hobgood, que ganhou em 2001. Acho que os juízes desta última década fizeram um excelente trabalho e levaram o surf a outro nível. Nunca tivemos um surf de competição com tanta radicalidade e com ondas boas e grandes. Acho também que o novo critério de somar apenas as duas melhores ondas, o surf competição está sendo levado ao seu limite, graças ao trabalho feito pelos juízes e pelo pessoal da ASP e de todos os paises, e principalmente aos surfistas, que são os responsáveis pela aprovação de todos os critérios estabelecidos. O critério de duas ondas obriga o surfista a realmente dar tudo de si, botar pressão nas manobras e escolher muito mais a onda. Quem tira um 10 praticamente garante a bateria, favorecendo quem arrisca mais, principalmente em ondas grandes e tubulares. Fica mais difícil, mas a galera está começando a se adaptar.
Os juízes da ASP já comentaram alguma coisa contigo sobre as críticas que eles recebem dos brazucas?
Nós recebemos criticas de todo mundo que perde, não só dos brazucas. Os brasileiros que estão ganhando não criticam. Ser juiz não é fácil em nenhum esporte, principalmente no surf, que é um esporte subjetivo e sujeito a interpretação do que é mais difícil e mais bonito. Nós conversamos sobre críticas, mas não de uma nacionalidade em especial.
Recentemente, Makaha foi palco do Mundial Master. Entre os 32 convidados, não havia nenhum brasileiro. Qual a sua opinião sobre isto?
Isto é conseqüência das dificuldades que o surf brasileiro enfrentou no final da década de 70 e início dos anos 80. Naquela época, além da falência da revista Brasilsurf e do “calote” que deram no Waimea 5000, existia um depósito compulsório de 2 mil cruzeiros para quem viajasse para o exterior, complicando ainda mais as viagens para quem já tinha pouca grana. Você só recebia a grana um ano depois e sem inflação corrigida. Acho tudo isto impediu que o surf brasileiro despontasse no cenário internacional e influenciou para hoje não termos nenhum convidado para o Mundial Master. Penso que esta é a única explicação, pois muitos brasileiros daquela época não deviam nada a ninguém e são meus ídolos até hoje: Pepê, os irmãos Pacheco, Betão, Bocão, Maraca, Rico, Mudinho, os Proença, Ian Robert, Daniel, Daniel Friedman, Cacau, André Pitzalis, Foca, Betinho, Ismael Miranda, Paulo Tendas, Fabrício, Paulo Uchoa, os cearenses Odalto e Zorrinho e os baianos Abukakir, Cly, Braulinho, Guelez, Fadul e Hiltinho. Logo depois, Cauli, Roberto Valério, Taiu Bueno, Almir e Picuruta Salazar, além de muitos outros, não conseguiram espaço internacionalmente porque a maioria não tinha patrocinador para correr o Circuito Mundial, não tínhamos mais eventos internacionais no Brasil, nem revistas para divulgar nosso surf para o mundo. Isto acabou prejudicando toda uma geração que iniciou o surf profissional e acreditou nele como um meio de vida, numa época em que ninguém nem sabia o que era, nem o levava a sério, principalmente no Brasil. Acho hoje um absurdo não termos pelo menos free-surfers das antigas convidados para Mundial Master, pois Randy Rarick e todos os surfistas daquela época sabem o que aconteceu e conheciam a qualidade de nosso surf naquele tempo.
É verdade que você foi o único brasileiro que conseguiu fechar Pipeline para um evento só entre brasileiros? Como foi esta competição?
É verdade. Foi no inverno de 88 e teve ondas com mais de 10 pés e os melhores surfistas locais julgando. A segurança d’água foi feita pelo Tery Ahue, que era o presidente dos Black Trunks naquela época. Consegui dois meses e meio de período de espera. Quem ganhou o campeonato foi o Fábio Pacheco, de Saquarema, com o pernambucano Fábio Quencas em segundo, os paulistas Edu Bahia e Anésio em terceiro e quarto lugares, respectivamente, Ianzinho Martins em quinto e o baiano Dentinho em sexto lugar. Na época quase não tinha competição por aqui, somente a Tríplice Coroa, mas consigo a permissão até hoje. Tentei de novo em 97 e 98, mas não consegui alguém que acreditasse e quisesse patrocinar o evento. Hoje acho que não vale mais a pena, pois concorreria o período de espera com as pessoas que me dão emprego durante o ano.
Quais os melhores brasileiros nas ondas havaianas?
É difícil falar em melhor surfista. Cada um tem seu dia de glória, cada swell é uma história diferente. Hoje os surfistas estão se especializando no mar que lhe trouxer mais dinheiro ou lhe der mais prazer. Admiro muita gente. No tow in, todas as duplas brasileiras são excelentes, como Burle e Eraldo, Rodrigo e Danilo, João e Pato, e agora Mancusi e Calunga. Todos estes arrepiam na remada e também nos tubos. Temos mais uma dezena de monstros em tubos, como Stephan Figueiredo, Bernardo Pigmeu, Paulo Moura, Wilson Nora e Renan Rocha.
Como você acha que um surfista deve se preparar para agüentar o peso das ondas do Hawaii?
Acho que a melhor preparação para ondas grandes é a prática. Quanto mais treino, melhor. Por isto os havaianos e australianos se sobressaem. Eles pegam e vêem ondas grandes desde pequeno, e vão atrás delas o ano inteiro. Mas um dia a gente chega lá também.
Nas últimas edições da revista Fluir, o localismo havaiano foi alvo de muitas críticas. É verdade que existe muita pressão em cima dos competidores estrangeiros que chegam aí no final do ano disputando o título com os donos da casa, como aconteceu este ano entre Luke Egan e Andy Irons?
A pressão é por causa da situação do Circuito. Os três últimos eventos com grande pontuação e prêmios são disputados aqui. Se fosse na Austrália ou no Brasil, a pressão local seria a mesma, por isso todo time quer jogar em casa. Mas nos últimos dez anos a pressão só funcionou mesmo com o Andy, pois o Sunny já chegou aqui com o título garantido, o Slater ganhou seis vezes e o C.J. e o Occy, uma cada. Esta história de roubo, preferência e pressão nos juízes não funciona, senão o Andy Irons não teria recebido a interferência dos juízes na etapa de Sunset, quando seu título ainda estava em jogo.
E a casa Volcom, onde uns brutamontes ficavam vigiando o outside de Pipe para espancar os “haoles” que rabeavam as ondas dos locais?
A casa da Volcom foi fruto da galera do Kauai ser muito unida e ter muitos lutadores de jiu-jitsu no meio deles, além de ficar de frente ao pico da onda mais cobiçada e crowd do planeta. Sou contra a violência, mas acho se o North Shore fosse em qualquer outro lugar do mundo, haveriam locais que tirariam a mesma braba. Vi localismo em vários picos do mundo desde a década de 60. Por aqui, já foi muito pior na minha época. A casa será entregue este mês e acho difícil alguém da região alugar outra a esta galera. Soube que alguém processou os donos da casa pelas brigas na área e eles tiveram que tomar a casa. Hoje existe uma placa na casa informando que as festas acabaram, não é mais permitido o uso de drogas ou bebidas alcoólica e só os patrocinados podem entrar na casa. Mas é lenda, a casa sempre está cheia.
Como vem sendo a repercussão do título de Andy Irons aí no North Shore?
Muito positiva. Ele recebeu até a chave da ilha do Kauai na semana passada, pelos feitos como atleta e pelo que faz pelas crianças locais.
Você o conhece bem? Ficou satisfeito por ele ser campeão?
Temos muitos amigos em comum. Nos falamos, mas nunca fui seu amigo. Sempre acompanhei sua carreira e sempre achei que se quisesse chegaria lá, pois sempre ganhou tudo que participou. Era só uma questão de tempo, sem dúvida nenhuma mereceu o título como ninguém.
Quais os novos talentos que estão sendo lapidados pelo Hawaii?
Tem uma galera arrebentando por aqui. Só para citar os principais: Jamie O’Brien, Joel Centeio, Dustin Cuizon, Kekoa Bacalso, Evan Valiere, Fred Patacchia, Danny Fuller e os irmãos Ola e Bene Eleogram, entre muitos outros.
Quais os brazucas que mandaram bem neste inverno?
Vi muita gente boa. Pigmeu, Marcondes, Yuri Sodré, Neco, Peterson, Danilo Costa, Marcelo Nunes. Vi quase toda a galera do WCT e WQS surfando bem e botando pra baixo nos dias grandes. Este foi um dos maiores e melhores invernos da década e muita gente detonou.
Você pretende voltar a morar no Brasil? Quando será sua próxima visita?
Não tenho planos de voltar definitivamente. Mas, acho que a partir deste ano, vou ficar sempre do meio de junho a setembro no Brasil, saindo apenas para o mundial Júnior na África do Sul em agosto. Só voltaria no momento se minha família precisasse. Gosto de ir todo ano, por mim passaria 6 meses no Hawaii, dois no Tahiti e quatro no Brasil. Ano passado consegui, mas o futuro a Deus pertence, só nos resta sonhar.
Lapo Coutinho residiu em Ilhéus de 1993 a 1995, fundou a Academia de Surf da Bahia na cidade e fez muitos amigos.
Por Ader Oliveira.